21 março, 2010

Um poema de João Negreiros

"é agora que os mato agora": curta-metragem de Sérgio Castro com João Negreiros



é agora que os mato agora


é agora

é a esses que eu mato agora

é agora

é a esses que eu quero agora

é agora

os que são melhores do que eu que eu mato agora

é agora que os mato por inveja

e depois por pena

e depois por medo

e depois por raiva

raiva louca roxa que me leva o sangue às ideias

é agora

é já

nem mais um de espera

é agora que os desfaço

nem mais um de vida

é agora que os mato com a angústia que levo destes anos todos

é agora a hora da vingança que não leva a nada mas que eu preciso para respirar de novo o ar dos homens

para ser de novo um homem

é agora que eu preciso de matar alguém para estar cá de novo como dantes antes de me darem conta do sorriso que veio no segundo a seguir ao parto

é agora que os mato agora

para me encontrar

para lhes dar o que merecem mesmo sabendo não ser justo

vou-me preparar e comprar a gabardina mais coçada dos filmes de acção para me dar o primeiro gozo da vida depois da montra da drogaria partida pelo tijolo

é agora que os rasgo sem frases de libertação

mas com o urro de quem perdeu a voz pelo meio das humilhações

a dignidade que me ficou para trás irei recuperá-la nos vossos trémulos corpos no momento do abate

é agora que mato todos os que estiveram quase a fazer-me o mesmo

iam fazer-me o mesmo

quase me fizeram o mesmo

já praticamente me fizeram

já praticamente me fizeram o mesmo

eles fizeram-me antes

vou fazê-lo depois

vou fazê-los

vou comer-lhes o sangue e os olhos para que não me vejam chorar nem mais uma vez

tem que ser

tem mesmo que ser

nem podia ser de outra forma

eles obrigam-me

obrigaram-me

empunharam-me a arma

ergueram-me os pulsos a tapar o Sol com a baioneta

eles levam o veneno no copo para que eu fuja do brinde e lhes dê a sede de beber

é agora

é agora que os mato agora

aos que estavam quase a

assassino-os a sangue-frio em legítima defesa pois sei

sei muito bem

sei-os demais

são iguais a mim

eu estou a matá-los

se são iguais a mim matar-me-ão mais tarde

se são como eu penso

vão acabar comigo

por isso mato-os agora

pronto

matei

pronto

morreram

pronto

já está

pronto

não há

pronto

não há ninguém

não vive ninguém

matei-os antes de ir

termina assim

eles eram iguais mas

se eram iguais

se eram mesmo iguais deviam ter pensado o mesmo que eu

matando-me no preciso momento

mas não

não pensaram

não eram

eram outros

diferentes

não pensavam

não queriam

não quiseram

não fizeram

não porque estou cá

não lhes li os pensamentos

não sabia

eles foram-se sem dizer ao que vinham

e eu fiquei a pensar no que fiz

estou a pensar no que fiz

e eles não pensam porque não o fizeram

eu fiz primeiro

sou o primeiro a fazer

sou o primeiro a fazer

sou o inventor do mal

sou o primeiro a fazer

sou o assassino

sou o primeiro a fazer

sou o carrasco

sou o primeiro a fazer

sou eterno

sou o primeiro a fazer o mal

sou o último

o que ficou para trás

estarei sempre atrás

a assobiar a sombra do remorso

sou o que vos quis como a ele

como a si

como vós

e arrumo os barbitúricos de novo no armarinho

e lambo as feridas das arestas do revólver

e rasgo a fronha da almofada para devolver as penas ao ar

espero toda a vida por sobreviventes

e no fim dela mato-me


in a verdade dói e pode estar errada, de João Negreiros

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